Gilberto Freyre (15 de março de 1900, Recife/PE – 18 de julho de 1987, Recife/PE). Um dos mais importantes intérpretes do Brasil que, nos anos de 1930, formulou uma das versões mais vigorosas sobre a identidade brasileira, atribuindo caráter positivo à mestiçagem cultural e racial e ao legado da família patriarcal. Inaugurou, a partir de então, uma abordagem que o tornou reconhecido artífice na tarefa de constituição da sociologia no Brasil. Durante a vida, e com notável regularidade, escreveu muitos livros. Algumas de suas principais obras são as que constituem a famosa trilogia: Casa Grande & Senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959). No entanto, para compreender o percurso de seu pensamento ao longo de todo o período, recomendamos também a leitura de Nordeste (1937), Açucar (1939), Interpretação do Brasil (1948), Integração Portuguesa nos trópicos (1958), Além do apenas moderno (1973) e Rurbanização: o que é (1982).
Gilberto Freyre nasceu em uma família de antigos proprietários de engenhos e comissários de açúcar. Em pleno período de deslocamento do eixo econômico para o sudeste e de transformações na produção açucareira, alguns de seus parentes assistiram ao declínio dramático do modo de vida aristocrático. Os pais de Freyre não foram arruinados, mas tampouco estavam entre os mais ricos: seu pai era professor do Ginásio Pernambucano formado na tradicional Faculdade de Direito do Recife; a mãe concluiu a formação escolar no tradicional colégio de freiras São José e foi, como o pai, figura importante no estímulo intelectual ao filho.
Freyre fez seus estudos no Colégio Americano Batista Gilreath, o que lhe abriu a oportunidade – incomum à época – de realizar curso superior nos Estados Unidos, na Universidade de Baylor, Texas, onde, entre os anos de 1918 e 1921, frequentou o curso de Ciências Jurídicas e Sociais. Em seguida, prosseguiu seus estudos na Universidade de Columbia, Nova York, onde assistiu aulas de sociologia, história e literatura e apresentou pesquisa sobre hábitos cotidianos da família patriarcal em Pernambuco do século XIX. Em 1923, já decidido a retornar ao Brasil, partiu em viagem à Europa, ocasião em que se sentiu atraído pela experiência universitária inglesa e pelos autores e grupos regionalistas da França e Espanha.
De volta ao Brasil, seu futuro estava indefinido, ainda que sua rede de relações pessoais fosse favorável. Era um jovem promissor, muito próximo do Vice-Presidente da República e depois Governador do Estado de Pernambuco, Estácio Coimbra. Nesse período, Freyre ajudava-o nas lides do gabinete, tarefa que o levava a viajar com alguma frequência ao Rio de Janeiro. Trabalhou também na direção de alguns dos principais jornais do Recife, transformando a redação ao estilo americano. Foi ainda um dos protagonistas do Movimento Regionalista do Recife, polemizando com modernistas de São Paulo acerca dos nexos entre região e nação, passado e modernidade. Finalmente, no último ano da década de 1920, ministrou aulas de sociologia na Escola Normal de Pernambuco, tarefa que o reaproximou de suas leituras de sociologia.
O ponto importante de inflexão em sua carreira é o Golpe de 1930 quando, após uma viagem em exílio voluntário para África, Portugal e Estados Unidos, retornou ao Brasil decidido a escrever uma obra de interpretação da sociedade brasileira. Nesse momento, suas ideias assumem forma sociológica nas páginas de Casa-Grande & Senzala (1933). O livro, publicado no Rio de Janeiro, foi imediatamente recebido como um ensaio original e polêmico. Além da escrita imagética que incomodou os mais conservadores ao descrever a vida íntima dos senhores, Freyre operou uma revolução no pensamento social brasileiro: rompeu com a tradicional abordagem que concentrava o foco de análise na composição racial da população e na definição da ossatura do Estado, transferindo o olhar para os elementos da cultura e da sociedade vistos da perspectiva da vida doméstica. Freyre ofereceu, com isso, uma solução inédita ao dilema da identidade nacional brasileira e ao enigma da relação entre vida social e política.
Segue-se então uma carreira exitosa de escritor que tem como característica o afastamento do meio universitário no mesmo momento em que ocorreu a profissionalização acadêmica das ciências sociais. Com exceção do período em que viveu no Rio e lecionou na extinta Universidade do Distrito Federal a convite do seu amigo Anísio Teixeira, Freyre fixou sua vida no Recife e manteve-se sob o abrigo do Instituto de Pesquisas Sociais Joaquim Nabuco, criado em 1949, durante seu mandato de Deputado Federal.
Suas ideias tiveram grande circulação e suas obras e interpretações são muito conhecidas. Isso se deve a um trabalho contínuo de contato com o público leitor que então se formava no Brasil. Nas décadas de 1950 e 1960, além dos livros e artigos de jornal, Freyre publicou também colunas semanais sobre cultura e sociedade para a revista de variedades O Cruzeiro, cuja tiragem, em 1960, chegou a um milhão de cópias por semana. Foi também reconhecido internacionalmente: deu cursos, recebeu prémios e homenagens na Inglaterra, França e Estados Unidos. Mas os efeitos de suas ideias foram notáveis em Portugal na década de 1950, quando suas formulações justificaram a ação colonial portuguesa na África. Nesse período, Freyre foi bastante criticado por intelectuais e professores da universidade que denunciavam seu compromisso com o regime autoritário de Salazar.
Sua interpretação acerca da dinâmica das mudanças sociais no Brasil é ainda relevante para o debate contemporâneo e são crescentes, desde os anos 2000, estudos sobre sua trajetória e seu legado analítico.
Fonte: https://www.sbsociologia.com.br/project/gilberto-freyre/
Em 1936, Gilberto Freyre publicou Sobrados e Mucambos, que é continuação de Casa Grande e Senzala e talvez a sua verdadeira obra-prima.
É um belo estudo do embate entre o Ocidente e o Oriente, no Brasil, durante o século XIX, onde defende a ideia de que a cultura brasileira havia sido gerada a partir de uma matriz oriental de valores, hábitos e conceitos sobre o mundo.
Desde muito cedo a ideia de uma orientalidade e de um amouriscamento do Brasil apareceriam na obra de Gilberto Freyre. A impressão de que o Brasil era, de alguma forma, um prolongamento da cultura oriental nos Trópicos.
Na perspectiva de Gilberto Freyre, as conexões entre o Brasil, no período de sua formação, e o Oriente, árabe ou asiático, iam muito além de aspectos arquitetônicos, tendo sido determinantes na conformação da sensibilidade brasileira, em sua visão de mundo e seus valores culturais mais marcantes.
O Oriente tornou o Brasil possível, no dizer de Freyre. Foram os saberes orientais que permitiram a construção da “maior civilização moderna dos Trópicos”. Freyre estava valorizando o Oriente como matriz cultural formadora do Brasil em contraposição a matriz européia.
Nesse sentido, ele destaca o papel exercido pelos navegadores e conquistadores portugueses como intermediários entre as duas metades do mundo, a ocidental e a oriental: Foram com efeito os portugueses que primeiro trouxeram do Oriente à Europa o leque, a porcelana de mesa, as colchas da China e da Índia, os aparelhos de chá, e parece que também o chapéu-de-sol. (Casa Grande & Senzala, p. 275).
Deve-se, aliás, registrar que na maior parte das vezes em que Gilberto Freyre fala em “Oriente”, está, na verdade, se referindo tanto à África, muçulmana ou não, quanto à Ásia. No seu discurso, o Oriente é uma ampla matriz cultural que abriga todos os valores não europeus e, inclusive, antieuropeus. Vejamos: A verdade é que o Oriente chegou a dar considerável substância, e não apenas alguns dos seus brilhos mais vistosos de cor, à cultura que aqui se formou e à paisagem que aqui se compôs dentro de condições predominantemente patriarcais de convivência humana […] Modos de viver, de trajar e de transportar-se que não podem ter deixado de afetar os modos de pensar (Sobrados e Mucambos, p. 424).
Sobrados e Mucambos apresenta o Brasil do século XIX, como um capítulo relevante da história da luta entre Ocidente e Oriente. O estopim da luta, que, na realidade, é uma guerra simbólica, teria sido a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, em 1808: “A colônia portuguesa da América adquirira qualidades e condições de vida tão exóticas – do ponto de vista europeu – que o século XIX, renovando o contato do Brasil com a Europa […] teve para o nosso País o caráter de uma reeuropeização” (Sobrados e Mucambos, p. 309). Junto com a Família Real vieram produtos ingleses e modismos franceses. Estes chegavam cercados de tal prestígio e poder de sedução, que tornavam difícil a resistência às “vozes de sereia do Ocidente” (Sobrados e Mucambos, p. 453).
O século XIX representou, assim, no Brasil, o fim do “primado ibérico de cultura”, que nunca fora “exclusivamente europeu, mas em grande parte, impregnado de influências mouras, árabes, israelitas, maometanas.
O Oriente perdia a batalha contra o Ocidente, na mesma medida em que a “manteiga francesa”, a “batata-inglesa”, o “chá também à inglesa”, agiam no sentido da “desafricanização da mesa brasileira, que até os primeiros anos da Independência estivera sob maior influência da África e dos frutos indígenas” (Casa Grande & Senzala, p. 458).
Por essa via o Brasil se afastava de si mesmo e se entregava a um processo de descaracterização, numa frágil tentativa de transformar-se numa Europa tropical.
Referências
Sobrados e Mucambos, 1936.
China Tropical, 2018.
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